Legalizando efetivamente o assassinato

A decisão de um tribunal francês sobre o assassino de Sarah Halimi poderia estabelecer um precedente assustador.

Theodore Dalrymple

08 de janeiro de 2020 – OLHO NAS NOTÍCIAS

A recente decisão de um tribunal francês, se tomada como precedente, legalizaria o assassinato – desde que o ato fosse cometido em um estado de loucura temporária causada por intoxicação por maconha.

Em 2017, Kabili Traoré, um muçulmano de origem maliana, que não tinha antecedentes psiquiátricos, mas um longo histórico criminal, com 22 condenações – incluindo roubo, tentativa de roubo, tráfico de drogas e posse de armas ilegais – subiu na varanda do apartamento de Sarah Halimi, uma judia de 66 anos, a torturou e depois a jogou da varanda para sua morte. Traoré parecia estar em um estado de excitação religiosa, pois foi ouvido gritar “Allahu Akbar” e “eu matei Shaitan” (Satanás). Não há dúvida de que ele estava psicótico na época, ou que seu estado psicótico foi precipitado pelo uso de maconha.

O tribunal absolveu Traoré porque ele estava psicótico quando cometeu o ato, enviando-o para um hospital psiquiátrico por 20 anos. A decisão causou alarme público generalizado, repugnância e escárnio. Mas, do ponto de vista estritamente jurídico, o tribunal pode estar certo. De acordo com o código penal francês, um homem não deve ser responsabilizado criminalmente se seu “discernimento” – seu julgamento – for anulado por um estado psiquiátrico ou neuropsiquiátrico. O código não faz da intoxicação voluntária uma exceção a esta regra.

Certamente, o que constitui a anulação do discernimento ou julgamento é em si uma questão de julgamento. Traoré sabia, por exemplo, que sua vítima era judia (ela era a única judia no quarteirão, e ele sabia disso com antecedência); ele também sabia que a estava matando. Ele deve ter tido pelo menos consciência intermitente de seu ato ilegal, pois a certa altura ele gritou que houve um suicídio e que a polícia deveria ser chamada. Por outro lado, é improvável que ele tivesse agido como agiu se não tivesse sido em estado psicótico.

A defesa argumentou, além disso, que Traoré não poderia saber que o uso da droga teria o efeito que teve nessa ocasião e, portanto, que ele não era culpado do crime pelo qual foi acusado. Afinal, ele fumava maconha desde os 15 anos sem episódios psicóticos. Sendo assim, uma vez que o consumo da droga foi voluntário, a psicose resultante foi involuntária.

Este foi um argumento descaradamente sofisticado. Se um homem toma uma droga ilegalmente, ele certamente é responsável por todos os efeitos dela sobre ele, esperados ou inesperados, desejados ou indesejados. Mas o tribunal levou a sério o argumento da defesa.

A jurisprudência francesa é muito confusa e inconsistente com a questão da intoxicação por maconha. Se alguém causa um acidente fatal sob a influência da droga, ela é considerada uma circunstância agravante e não uma desculpa ou mesmo atenuante. Assim, a intoxicação por maconha agrava um acidente, mas (com base nas recentes decisões) absolve um assassinato: uma doutrina peculiar, para dizer o mínimo.

O tribunal também deliberou sobre a questão de saber se o homicídio foi motivado pelo anti-semitismo – uma circunstância agravante, na lei francesa – e concluiu que foi. A defesa argumentou que não, e que Traoré esteve anti-semita apenas por causa de seu estado psicótico. Isso tornava uma coincidência o fato de sua vítima ser o único indivíduo judeu no edifício. Isso não apenas é contraditado com seus antecedentes, mas também desconsidera o fato de que o conteúdo dos delírios das pessoas reflete a cultura ou subcultura em que vivem. De fato, dificilmente poderia ser de outra maneira: uma pessoa do século XVII que sofria de delírios paranóicos não teria se queixado de ser seguida pela KGB ou pela CIA. E, como Thomas De Quincey colocou em suas “Confissões de um devorador de ópio inglês” de 1829: “Se um homem cuja fala é de bois se tornar um devorador de ópio, é provável que … ele sonhará com bois”.

Traoré pode estar livre em alguns anos, apesar de o tribunal o ter enviado para um hospital psiquiátrico e o sentenciado à vigilância por 20 anos. Se dois psiquiatras independentes concluírem que ele não está mais psiquiatricamente doente e não representa perigo para o público, ele poderá ser libertado muito mais cedo – e dois psiquiatras quase certamente tomarão essa decisão bem antes desse prazo.

A revista francesa L´Express, que tem uma grande circulação, perguntou: “Quem supervisionará Traoré?” A resposta já é conhecida sem dúvida: depois que ele sai do hospital, ninguém. Isso ocorre porque essa supervisão é impossível. De fato, Traoré já foi capaz de obter seu “droga preferida”* mesmo dentro do hospital de alta segurança em que está detido.

De qualquer forma, na minha opinião, não deveria haver nenhum debate sobre se ele deveria ser supervisionado quando estiver em liberdade, porque não deveria haver dúvida sobre se ele deveria estar em liberdade em algum momento. Enquanto ele permanecer psicótico com os efeitos da cannabis – o que pode durar muito tempo – ele deve ser tratado no hospital. Quando ele estiver melhor, ele deveria ser enviado para a prisão, para permanecer pelo resto de sua vida, sem possibilidade de libertação.

Com efeito, a lei e os juízes na França entregaram habilmente a responsabilidade no caso à profissão médica, à qual ele não pertence. O código penal deve ser ajustado para que os tribunais não possam fazer isso novamente e para que os efeitos da intoxicação voluntária não possam ser tomados como argumento de defesa.

*No original, Dalrymple diz literalmente, de maneira sarcástica, “seu medicamento de escolha”.

 

 

Theodore Dalrymple é editor-colaborador do City JournalDietrich Weismann Bolsista no Manhattan Institute, e o autor de muitos livros, incluindo Out into the Beautiful World e o recém publicado Grief and Other StoriesEle é um psiquiatra aposentado que, mais recentemente, trabalhou em um hospital e em uma prisão britânicos no centro de Londres. 

Foto: stocknshares/iStock (extraída diretamente do texto original no site do City Journal)

Copyright (c) 2019 City Journal & Theodore Dalrymple; traduzido para o português por Marcos Pena Jr sob permissão do City Journal. Todos os direitos reservados. Este produto é protegido por direitos autorais e distribuído sob licenças que restringem a cópia, a distribuição e a descompilação.

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